Matheus Rocha Pitta – Fonte para o Manifestante Desconhecido

11/04/2015

Com “Fonte para o Manifestante Desconhecido” Matheus Rocha Pitta dá seguimento às experimentações nos limites entre diferentes meios e expressões. O trabalho consiste em sentar em praça pública uma laje marcada com formas negativas de garrafas de plástico e recortes de jornais que mostram um manifestante cujo rosto é velado por um jato de água de alta pressão atirado pela polícia. Em um segundo momento, convida-se o público a trazer garrafas d’água para serem deitadas e destampadas em frente ao lugar num mesmo sentido, de maneira que o líquido escorra até o limite e resguarde dentro do recipiente o volume morto. Forma-se então uma grande instalação construída coletivamente por atos de entrega voluntária e seus resíduos.

A figura de uma pessoa cuja identidade é coberta por um gesto de violência repressora não deixa de ser dúbia: o esforço que a reprime fisicamente é o mesmo que a mascara – estratégia utilizada voluntariamente por quem protesta. Ou seja, a protege de uma possível identificação e, consequentemente, de perseguições futuras. Mais importante ainda, dispõe o vazio – resultante da impossibilidade de personificação do sujeito – a serviço do emblema, pronto para representar uma ideia e, naturalmente, qualquer um que possa se identificar ou solidarizar com a situação.

O uso dessa fotografia agarrada num retângulo de concreto, como no processo de formação dos túmulos feitos com poucos recursos – em que se usa jornais para isolar o fundo do molde -, é a chave de ignição para uma atividade específica. Sendo assim, a operação do artista parte de um objeto, que por sua própria natureza indica permanência e perenidade, para se inclinar no campo do efêmero e, sobretudo, do imprevisível. Ao justapor, através da imagem e da ação, o manejo do mesmo elemento em dois gestos opostos, um de brutalidade coercitiva e o outro de singela generosidade, o procedimento evoca um discurso igualmente consternado e espirituoso.

Ergue-se um monumento cujo ato é uma fabulação de aspectos globais. Em um só apanhado temos uma imagem de um fato ocorrido na Turquia, recortada de um jornal alemão e exposta na região central de São Paulo, exatamente em um sítio sob o qual se passa um rio soterrado pelo asfalto, e cujo nome Anhangabaú – de origem tupi – pode ser entendido como água do malefício, provavelmente batizado em razão de conflitos históricos. Ao ganhar corpo no centro simbólico do iminente colapso dos recursos hídricos do país, naturalmente aponta também novos significados. Num cenário em que para muitos falta água até para as necessidades básicas, o artista pede que molhemos conjuntamente o solo nesse terreno cuja natureza foi gorada pelo progresso urbanizador.

No decorrer da ação, o artista cria um conjunto de sensações que atua sempre em sentido transformador, em vista do porvir. Como sintetiza categoricamente Gilles Deleuze: “um monumento não comemora, não celebra algo que se passou, mas transmite para o futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada.” Esquadrinha-se assim o imaginário que dá vida às diligências que o inspiram, como o oratório da Defunta Corrêa na Argentina e as versões do “Túmulo do Soldado Desconhecido” espalhadas pelo mundo – memoriais que recebem visitas e, respectivamente, doações de garrafas com água e coroa de flores.

Inscrito nos tecidos de uma via urbana marcada por alguma heterogeneidade social e diferentes camadas arquitetônicas – o que só pode se dar pelo conflito – nos deparamos com um depositário capaz de receber uma matéria trivial e envolvê-la em novos sentidos. Do depósito das garrafas e derramamento de água, ao recebimento e armazenamento, examina-se a gramática das experiências e vínculos que constituem as ocupações comuns. Presenciamos, no fim, um recorte que configura novas trocas e partilhas possíveis no espaço e tempo em que se vive junto.

Germano Dushá

 

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