Os fios de eletricidade que percorrem a cidade cortam nossa visão e fragmentam a paisagem ao mesmo tempo que são veias que nos unem numa grande narrativa urbana. Enquanto rasgam, também amarram. Num período cuja constante são as marcas de trauma e mudança social, Raquel traça um texto neste emaranhado e indica trajetórias possíveis entre signos distintos.
A fotografia deixa de ser bidimensional. Existe amassada, dobrada, sobreposta e rasgada, retomando sua presença no mundo ao desafiar os limites entre o espaço virtual da imagem impressa e o espaço real da exposição. A partir desta edição tridimensional, investiga-se suas possibilidades no campo expandido, para além de sua planaridade, velando e revelando o sensível da imagem. O vidro perde sua função tradicional de proteção obtendo outro estatuto e também se tornando ferramenta de edição e montagem. A artista opõe o controle das operações formais a um processo experimental, rompendo a constrição da forma com uma energia que faz com que elementos simples e estruturas básicas assumam rotas incontroláveis. Observamos assim a fusão de linguagens pela qual a imagem se torna primeiro abstrata e depois escultural.
A estética de Raquel não é um estilo, mas sim uma atitude em que gestos cuidadosamente considerados prevalecem sobre a produção das coisas materiais. É uma série de estratégias que não se percebe como uma forma completa, autônoma, mas como um recipiente, um interstício entre imagens e materiais distintos. A artista rejeita qualquer monumentalidade em prol de uma prática fluida e transiente. Afinal de contas, se a vida é efêmera, por que a arte também não pode ser?
“Fio” afirma nada, mas questiona tudo, desde suas qualidades formais até seu lugar no mundo. Não há slogans e manifestos, mas uma contenda pessoal na qual as formas fragmentadas e imagens rasgadas discutem menos os limites da arte do que propõem um engajamento com a vida. Não se trata da representação de uma realidade em caos e dissenso, mas sim de um pedaço dela, uma metonímia de nosso tempo, insinuando-se em suas fibras para encadear possíveis histórias.
A amarração instável de pedaços e fragmentos de diferentes narrativas adquire nesta exposição um corpo que rejeita um significado linear. Não há leituras individuais, mas redes de imagens sem conteúdo semântico ou relato claramente identificável, apenas um acoplamento de emoções e estados de espírito numa atmosfera instalativa ambivalente que se debruça sobre memórias afetivas e pulsos inconscientes. São as páginas soltas de uma história – que não é nossa, mas poderia ser – em constante ressignificação, onde passado, presente e futuro estão em movimento e transformação contínua.
Fernando Ticoulat, curador.
Fio, 2014 / Jato de tinta em papel sulfite, ampliação C-41, vidro, verniz e grampos / Dimensões variáveis
Fio, 2014 / Jato de tinta em papel sulfite, ampliação C-41, vidro, verniz e grampos / Dimensões variáveis
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