“Como a verdadeira natureza se perdeu, tudo pode ser natureza.”
Lezama Lima
Desde algumas de suas primeiras obras, Ricardo Carioba vem desenvolvendo seu trabalho sob o signo da decomposição e da subtração das formas expressivas. Esse processo de redução, em que somente elementos mínimos são utilizados, é perpassado por uma desconfiança sobre a linguagem e as narrativas que ela mobiliza, e tem equivalência no processo da perda de importância da superfície bidimensional em prol do vídeo, primeiro, e depois da música. É como se fosse preciso recuar até a imaterialidade do som para construir um objeto artístico legítimo, livre tanto quanto possível de condicionamentos.
No site-specific ora apresentado no Coletor, Carioba desenvolve dispositivos utilizados em trabalhos anteriores (hipotético fluído, horizonte negro) para criar uma espécie de escultura audiovisual imersiva, que se sobrepõe ao espaço expositivo, desdobrando algumas de suas características. Nas salas contíguas de uma casa em que ninguém mais mora, as duas grandes entradas de luz natural recebem filtros – um vermelho e outro verde – e três vídeos são projetados. No primeiro deles, ao centro, elipses brancas sobrepostas se movimentam e se sobrepõem de acordo com as variações de frequência da composição sonora. Nos vídeos laterais, direcionados para o teto, as projeções acompanham os pulsos graves e agudos da música, que fracionam o tempo como pequenas explosões. Na esquerda, próximo à entrada de luz verde, dois quadrados brancos de tamanhos distintos se alternam e somem. Na direita, próximo à entrada de luz vermelha, uma linha fraca, também branca, pisca; a música, distribuída no espaço, rege e ordena tudo.
Nessa nova unidade espacial, híbrida, a luz, os vídeos e o som definem, com o uso de elementos formais mínimos (o quadrado, a elipse e a linha), uma experiência sensorial que não reivindica nada, pois seu tempo circular suspende a história. Ali, trabalho algum é concluído (ou sequer possível), como se estivéssemos em um lugar depois do fim dos lugares, vazio de expectativas ou interlocutores.
Na casa vazia, o espaço real é dissolvido. Os ouvintes-espectadores submergem em um som-luz que parece vir de uma estrela que já não existe mais, mas cuja luz continua nos chegando e traz ao mesmo tempo a beleza e a melancolia de algo que se foi. Não subsiste nenhum otimismo técnico (como se a obra mesma deixasse de ser um trabalho, algo que não tem necessidade nem da espiritualidade nem da operosidade humanas), nenhuma construção; a elipse do vídeo central, desde seu nome (élleipsis, em grego, quer dizer supressão), indica essa busca por uma experiência pura (e, num certo sentido, numinosa) que orienta a obra. Noutra ponta, a música está conectada com o grau mais básico da nossa experiência física – com uma corporeidade que não é animal, mas dos corpos celestes.
A natureza perdida, aqui, não é substituída por uma queixa, ou um lamento nostálgico, e nem mesmo o abandono da linguagem e da narrativa são sentidos como uma ausência, ao contrário. Esse afastamento é necessário para que possa emergir do silêncio alguma liberdade – a recusa de ilusão e de esperança oferece ao pensamento o éter de um novo espaço. Nessa nossa época sem particularidades – nesse nosso tempo sem espírito –, encontramos aí, outra vez, o ponto a partir do qual nossa palavra pode recomeçar. É como se enfim, nesse som sem fala, ouvíssemos os ecos da nossa gagueira.
Gabriel Bogossian