Em um auditório instalado numa antiga capela – cuja acústica é dita invejável – uma orquestra se reúne para ensaiar uma sinfonia. Tudo é filmado por uma equipe de TV que pretende registrar o momento. Aos poucos, os pequenos desentendimentos, principalmente entre os instrumentistas e o maestro que abusa de sua autoridade, instauram um mal-estar generalizado. Diante das vaidades, prioridades pessoais, questões burocráticas e embates ideológicos, surge um incontrolável cenário de desordem, que se desenvolve em franca ascensão: alguns fazem grafites obscenos na parede, outros batem estridentes seus instrumentos, enquanto muitos gritam com fervor: “Orquestra, terror, morte ao condutor!”. A confusão só é interrompida por uma situação absurda: após sucessivos estrondos, um pedaço do recinto é derrubado por uma enorme bola de demolição. A perplexidade e o abatimento ante ao fato são superados ao passo que o grupo tenta trabalhar junto mais uma vez.
Assim como nestas cenas do filme “Ensaio de Orquestra” de Federico Fellini – do qual toma emprestado o título – o presente trabalho de Lais Myrrha progride da potencial harmonia ao crescente dissenso. Primeiro oferece um campo expositivo em perfeito estado mas completamente vazio. A situação do espaço aponta para suas possibilidades de ocupação e, naturalmente, suspende sua vocação. Em um segundo momento, fazem-se ouvir barulhos comuns às práticas da construção civil. São os mesmos ruídos, estardalhaços e estrondos que se espalham todos os dias pelas ruas da cidade. Logo a barulheira toma conta do ambiente e, apesar de não vermos nenhuma imagem correspondente, é inevitável construí-las mentalmente com riqueza de detalhes. Cada batida, cada raspada ouvida, invoca a figura. No cume desta ação, uma parede é demolida. Os tijolos do topo começam a cair, em seguida blocos se despedaçam, e não tarda para que quase toda sua estrutura esteja desmanchada. Revela-se então um cômodo da casa completamente desossado e, aos fundos, um amontoado de entulhos. Findo isto, os homens que estavam operando a destruição na sala do outro lado da parede atravessam seus destroços e vão embora.
A cortina aqui é de alvenaria: para que surja o que veda é preciso ser derrubada, e uma vez no chão não apresenta possibilidades de reconstituição. Quando rompe-se, enxergamos em imediato a paisagem do escombro avançar para o outro lado – asséptico e intocado. Este movimento faz pensar então no porvir se insinuando sobre a função atual do lugar. A ruína que sobra da ação promovida pela artista mostra mais do que vestígios de algo que já foi; congela-se o tempo como um todo: antes, agora e depois capturados num único momento. Neste estado transitório vemos o jogo de corpo de uma casa que em breve não irá mais existir, e cujo uso futuro da área que deixará em legado não sabemos, apenas supomos.
A artista nos faz presenciar parte de uma operação voluntária que desmantela e constrói. Nesse sentido, ao ficcionar o real nos põe de frente com o implacável cotidiano e os inúmeros questionamentos que acompanham seu pavimento. Nos perguntamos quem o opera; às quais vontades se submete o seu fluxo; o que deve ruir e o que merece subir.
O “Ensaio de Orquestra” de Lais emprega seu vigor para renegociar as distinções e fronteiras entre os modos do discurso que conta nossa história, ressaltando suas tensões constitutivas ao tomar em igual medida realidade e artifício. Como no começo e encerramento da obra de Fellini, a artista nos apresenta, sem a necessidade da retórica visual, os sons de um caos comum; e quando cessa suas atividades não coloca ponto final, preocupa-se apenas em abrir caminhos. Sob os ecos dos verbos do progresso joga luz sobre os processos que conduzem nosso dia-a-dia, e nos deixa a ponto de pensar: depois daqui, o que será?
Fernando Ticoulat e Germano Dushá